A primeira bicicleta a gente nunca esquece

A ansiedade tomava conta de todos. Primos, tios e avós reunidos para a chegada de Papai Noel. Era um zunzunzum daqui e dali, numa expectativa que durava todo um ano, de receber o sonhado e esperado presente. Trens, bolas, bonecas e, sabe-se lá o porquê, uma melancia. Minha prima havia pedido uma melancia. Exato, uma melancia!

Enfim, lá vinha Papai Noel. Na hora que o vi, tive um pressentimento não muito bom. Ele era o que se pode chamar de um Papai Noel esquisitão. Não tinha barriga e era bem magrelo. O bigode era preto, não tinha barba e havia apenas três fios de cabelo em sua cabeça. Além disso, não fazia “OHH…OHH…OHH”, e sim “AHH…AHH…AHH”.

Primeiro presente: a abóbora de minha prima. Abóbora??? Não era melancia? Não sei o que aconteceu, mas o que ela ganhou foi uma abóbora. Presente do Carlinhos: um chiclete. Porém, o que ele havia sonhado durante todo o ano era um canivete. Gritou, então, o esquisitão: “O próximo: Marquinho, venha pegar seu presente”. Meio desconfiado, lá foi ele, ainda esperançoso de que ganharia uma grande bola.

–“Tome, moleque, pegue logo esta camisola!”, vociferou Papai Noel.

Este aí sou eu. Montado em minha nova bicicleta, mal sabia o que me aguardava em seguida. (foto: theirhistory / Flickr / (a href=https://creativecommons.org/licenses/by-nc-sa/2.0/) CC BY-NC-SA 2.0 (/a))

Este aí sou eu. Montado em minha nova bicicleta, mal sabia o que me aguardava em seguida. (foto: theirhistory / Flickr / (a href=https://creativecommons.org/licenses/by-nc-sa/2.0/) CC BY-NC-SA 2.0 (/a))

Na minha vez, meu desânimo era total. Porém, surpreendentemente, a bicicleta tão sonhada veio como desejada. Embrulhada num laço verde, com as rodinhas de trás e uma buzina estridente. Em uníssono, meus primos disseram: “Ooohhhhhhhhhhh”.

Após a primeira volta, larguei-a momentaneamente para a despedida final. Entrando eseu fusquinha vermelho, Papai Noel acelera na marcha-ré, erra de direção e transforma minha reluzente bicicleta numa maçaroca de ferros pendentes. E, então, meus primos disseram: “Aaahhhhhhhh”.

Da bicicleta perfeita a um monte de cacos retorcidos. Coisa parecida ocorre, por vezes, com os fósseis que encontramos no interior das rochas. Animais e plantas, quando vivos, possuem formas, cores e texturas surpreendentes. A forma dos corpos revela simetria e beleza. Porém, logo após sua morte e durante os processos de soterramento que possibilitam sua transformação e preservação como fósseis, muito de seus aspectos em vida se modificam profundamente. A cor some e a textura superficial do corpo se altera. A simetria, em que ambos os lados do animal ou planta se repetem, pode até mesmo desaparecer.

As transformações observadas logo após a morte de um organismo e que continuam após seu soterramento são conhecidas como Tafonomia. São os eventos que ocorrem sobre os organismos mortos até a transformação destes em fósseis. O peso dos sedimentos que os recobrem, as substâncias químicas existentes na água que mineraliza os restos orgânicos e o aumento da temperatura em direção ao interior da Terra mudam progressivamente o aspecto original, de quando estes ainda se encontravam vivos.

Observe bem este fóssil. Trata-se de uma folha com 100 milhões de anos. Como resultado dos fenômenos da Tafonomia, que transformam os restos orgânicos em fósseis, ela não está totalmente completa. (foto: Ismar Carvalho)

Observe bem este fóssil. Trata-se de uma folha com 100 milhões de anos. Como resultado dos fenômenos da Tafonomia, que transformam os restos orgânicos em fósseis, ela não está totalmente completa. (foto: Ismar Carvalho)

A Tafonomia também nos ensina que no registro fóssil a preservação dos animais e plantas é sempre desigual. Aqueles que apresentam partes mais resistentes, como os ossos, conchas ou lenhos, serão sempre fossilizados com maior facilidade, mesmo que suas formas se modifiquem devido aos fenômenos internos de nosso planeta.

Coitado deste peixe. Logo após sua morte, o apodrecimento de sua carne e o posterior soterramento fizeram com que seu corpo ficasse todo quebrado. (foto: Ismar Carvalho)

Coitado deste peixe. Logo após sua morte, o apodrecimento de sua carne e o posterior soterramento fizeram com que seu corpo ficasse todo quebrado. (foto: Ismar Carvalho)

Algo semelhante com o que ocorreu com minha primeira bicicleta. Elegante, forte e capaz de circular suavemente pelo pátio de minha avó, transformou-se em segundos num amontoado disforme de ferro enrolado. Assim, neste Natal, desconfie se em sua casa aparecer um Papai Noel sem barriga, sem barba, magrelo, bigode preto, e com apenas três fios de cabelo na cabeça.  

Um bom Natal para todos vocês e nos encontramos novamente em 2015!